DESIGUALDADE NA DISTRIBUIÇÃO DA TERRA URBANA NO SUL GLOBAL: Entrevista com Luísa Filho sobre o caso de Luanda | Land Portal

Foto: Adam Reeder/flickr

Para refletir sobre as diferentes desigualdades nos espaços urbanos, a Land Portal Foundation inicia uma série de entrevistas realizadas com acadêmicos/acadêmicas e defensores/defensoras de direitos humanos e territoriais. As entrevistas oferecem retratos de como esta distribuição desigual impacta as populações mais vulneráveis durante a pandemia do COVID-19. 

A entrevistada de hoje é a pesquisadora angolana Luísa Filho, Formada em Economia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil – UFSC (2019)

AM -Nos países do Sul Global, historicamente o acesso formal à propriedade e a posse de terra estavam mais frequentemente relacionados ao acesso ao poder e privilégios. Existe, na sua cidade, uma clara divisão da terra em função da raça/etnia e classe social? Como esta divisão foi estruturada historicamente e como ela é hoje?

 
LF: Luanda é a capital de Angola e antiga colônia portuguesa. A metrópole (Portugal) exercia uma hegemonia em Luanda, que era sustentada por ideologias raciais, que legitimavam como biológicas as diferenças histórico-sociais, que fundamentavam a divisão de terrenos urbanos na cidade, influenciados nitidamente por questões raciais e pelas relações de poder (imperialista) entre colonizador e colonizado. O espaço urbano Luandense era constituído por dois grupos distintos. O primeiro, formado exclusivamente por cidadãos brancos ligados à coroa, ou seja, pela elite portuguesa que habitavam na região central de Luanda. O segundo grupo, marginalizado pelo sistema socioeconômico da capital, era formado por africanos, negros e mestiços, e por uma grande quantidade de população branca não-especializada, que imigraram para Angola no final da década de 1940. Esses coletivos encontravam-se na região periférica da cidade, denominada Musseque (na língua nacional de Angola, Kimbundu).
 
A independência de Angola foi alcançada em 1975 após mais de uma década de guerra de libertação contra as forças portuguesas, protagonizadas pelos movimentos nacionais de libertação: Movimento Popular de Libertação de Angola – MPLA, União Nacional para Independência Total de Angola – UNITA e Frente Nacional de Libertação de Angola – FNLA. Após a retirada dos portugueses, havia grande expectativa criada pelos Musseques em poder, finalmente, habitar na região central da cidade. Entretanto, viram-se frustradas quando esta foi ocupada por militares e líderes do movimento nacional que venceram a batalha pela capital, o MPLA. 
 
Atualmente essa divisão permanece igual, com a única exceção de que indivíduos nacionais e estrangeiros com média e alta renda conseguiram e conseguem adquirir terrenos/moradias na região central de Luanda, enquanto que as populações nacionais e estrangeiras, na sua maioria de países africanos, de baixa renda e abaixo da linha de pobreza permanecem nos Musseques (periferias) da cidade de Luanda.
 

 

AM - Segundo dados da ONU-Habitat, a população que vive em favelas no mundo cresce em torno de 25 milhões de pessoas por ano, registrando as maiores taxas de urbanização nos países mais pobres. Os projetos urbanos têm contribuído para expulsão e deslocamento de populações que vivem em pobreza na sua cidade? Como esses tipos de despejo transformaram os padrões de distribuição de terras urbanas em sua cidade na última década?
 
LF: Após a independência, Angola mergulha num longo período de guerra civil que perdurou cerca de 27 anos. Alcançada a paz, em abril de 2002, busca-se reconstruir o país que contava nesse período com uma grande parte da população rural que havia migrado para o centro urbano, Luanda, e instalada nas zonas periféricas da cidade. No período de 1975 a 2002 as periferias de Luanda cresceram exponencialmente devido a guerra. Diante dessa realidade e tendo em conta o plano de urbanização e ordenamento de Luanda, o governo inicia um ciclo de expulsões forçadas em massa da população nos assentamentos informais, geralmente realizados de forma arbitrária, sem qualquer processo de consulta prévio, havendo relatos de violência física e até mesmo gerando vítimas mortais.
 
O mais caricato, é que os cidadãos que resistem e reivindicam o direito à terra são taxados como pobres, desordeiros e nunca como cidadãos com direitos e liberdades.
 
Nas palavras de Daniel dos Santos no seu artigo Encontro e pobreza moral em Luanda – Urbanização, direitos e violência: O Estado expulsa, surra, aprisiona e, algumas vezes, mata em nome do seu “direito” e da sua “justiça”. Uma das ações das autoridades espelha essa situação, pois em agosto de 2016, um adolescente foi morto por efetivos das Forças Armadas Angolanas (FAA), quando protestava contra a demolição da casa dos seus pais juntamente com outros moradores do bairro Walale no município de Viana em Luanda.
 
Os investimentos econômicos e a expansão das áreas comerciais e industriais têm ameaçado os bairros de habitações das pessoas de baixa renda.  Projetos urbanos como a reforma do centro histórico e da região da Baía de Luanda, bem como a ampliação do porto de Luanda, contribuíram para o aumento da pressão sobre os Musseques e seus moradores. Em determinados espaços urbanos foram construídos condomínios para trabalhadores de empresas petrolíferas estrangeiras e nacionais, bem como dos novos ricos-angolanos, ligados à elite política, sobretudo na parte sul e no centro da capital.
 
Luanda é uma cidade indivisível, os Musseques fazem parte da estrutura da cidade, sem eles a cidade não existe. Tendo em conta o disposto no artigo 85º da Constituição da República de Angola, todo cidadão tem direito à habitação e a qualidade de vida. Isso faz-se necessário que o Estado angolano mantenha um diálogo aberto com os moradores das periferias ou Musseques para que casos como da morte do adolescente não se repitam.
 
 
 
AM - O consumo de terra em países com economias em desenvolvimento no Sul Global aumentou na última década. Você já observou esse fenômeno na distribuição do espaço urbano em seu país/cidade? Existe um novo padrão para a distribuição de terras urbanas que não apenas privilegia a elite local, mas também tem implicações nas terras acessadas por pessoas de outros países (ricos ou pobres)?
 
LF: A distribuição de terras em Angola tem sido durante anos, um tema cujo o efeito direto tem resultado nos conflitos que surgem da enorme desigualdade entre a população. Com o objetivo de mitigar tais conflitos, em 2004 foi aprovada a Lei de Terras (Lei nº 9/04 de 9 de novembro), passando assim a distribuição e gestão de terras a ser da responsabilidade do governo através do Ministério do Urbanismo e Ambiente. Apesar disso, a distribuição e propriedade de terras urbanas encontra-se concentrada nas mãos de uma minoria política, dos altos membros das forças armadas (FAA) e dos empresários, nacionais e estrangeiros, que acabam excluindo a população e aumentando a sua marginalização. A lei sobre a distribuição e gestão de terras se dirigiu à proteção dos interesses das elites nacionais contra a competição internacional, vista como um dos assuntos cruciais que faz iniciar conflitos, porque as pessoas lesadas procuram pontos de assentamentos, tanto nas zonas urbanas como nas rurais.
 
 
 
AM - O direito a cidade, e o direito a posse formal da terra são essenciais para o desenvolvimento econômico, social e político daspessoas que vivem em situações vulneráveis, especialmente as mulheres. Segundo a GLTN, a posse legal de terra atinge apenas 30% das áreas habitadas nos países em desenvolvimento. Desse total, apenas 3% das mulheres possuem documentos de registro de propriedades. Existem políticas urbanas específicas em seu país que garantam o direito à posse de terra para as mulheres, especialmente as que vivem em assentamentos informais ou favelas?
 
LF: O direito de propriedade sobre terrenos urbanos (e rurais) em Angola são administrados por dois instrumentos legais: a Constituição da República e a Lei de Terras que regulamentam a concessão de terrenos no país. Teoricamente, a Constituição de Angola tutela os direitos de homens e mulheres de maneira igual, no que se refere ao acesso à terra, enquanto que na prática essa realidade não se verifica.
 
Apesar de estarmos vivendo um movimento intenso sobre equidade de gênero, à nível mundial, as desigualdades de oportunidades e condições entre homens e mulheres em Angola é bastante nítida. As mulheres angolanas, apesar de constituirem a maioria, demograficamente, sendo 52% do total da população, são sociologicamente uma minoria, pois o poder econômico, político e cultural está essencialmente concentrado entre os homens. Esse fato, explica, de alguma forma, a dificuldade no acesso ao título de propriedade de terrenos (urbanos e rurais) que enfrentam as mulheres angolanas.
 
Em 2018 foi realizado, em Luanda, o Iº Fórum da Mulher no Meio Rural e das Micro Finanças, as participantes haviam recomendado ao Ministério da Agricultura e Florestas, a facilitação no processo de concessão de títulos de terra para as agricultoras. Com relação as mulheres que vivem em assentamentos informais nas zonas urbanas do país, a realidade não difere. Para além da inexistência de políticas urbanas específicas que garantam o direito à posse de terra para as mulheres, a excessiva burocracia nas instituições públicas tem dificultado o acesso aos registros de propriedade para as mulheres angolanas.
 
 
 
 
AM - A desigualdade na distribuição da terra urbana em metrópoles do sul global cria formas específicas na organização do espaço e moradias em áreas de pobreza densamente povoadas. Como se vivencia a passagem do COVID-19 nestes espaços na sua cidade ou na sua comunidade? 
 
LF: Os primeiros casos de coronavírus registrados em Angola foram importados do exterior, na sua maioria, de países com alto risco de contaminação, o que fez com que o governo estabelecesse dois tipos de quarentena. Em quarentena institucional estão 688 pessoas. Já a quarentena domiciliar é para os cidadãos em que as autoridades determinem situação de vigilância ativa.
 
Os demais cidadãos, do centro e dos Musseques de Luanda, encontram-se em confinamento, proibidos de circular desnecessariamente, exceto em casos de necessidades urgentes e para a realização de atividades laborais sem riscos de contaminação, em horários previamente estabelecidos de acordo com o decreto presidencial nº 128/20 de 8 de maio. 
 
A atenção do executivo com os bairros periféricos tem sido redobrada, o uso de máscara em estabelecimentos e via pública é obrigatório. A polícia nacional tem estado nessas zonas fazendo o controle para evitar aglomerações de pessoas, como forma de evitar novas contaminações. Nas periferias em que houve confirmação de casos de transmissão local, foram criadas cercas sanitárias e as pessoas que se encontram no espaço serão todas testadas. 
 
Luísa Correia Filho
Nascida em Luanda - Angola. Atualmente reside no Brasil. Formada em Economia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2019). Pesquisa sobre temas relacionados às áreas de Economia Internacional e Economia e Desenvolvimento Regional com ênfase para tópicos que envolvam a componente terra e os investimentos estrangeiros em Angola.
 

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