Autor: Izabela Sanchez
Em 11 anos, as políticas públicas que garantem o direito à alimentação vão diminuir ou desaparecer. Disputas internas de orçamento no Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário levarão à extinção de vários programas e serviços. Um relatório da Fian Brasil diz que, nesse período, a pasta não terá recursos nem para cumprir sua única obrigação constitucional, o BPC, um benefício para idosos e pessoas com deficiência cujas famílias têm renda abaixo de 1/4 do salário mínimo.
A Fian Brasil – Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar – divulgou neste mês essa projeção no relatório “Da democratização ao golpe“, sobre os avanços e retrocessos na garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas no Brasil. Segundo a Instituição, o Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (Dhana) está ameaçado pelo fortalecimento do agronegócio e por ameaças vindas do Executivo, Legislativo e Judiciário.
A Fian Brasil observa que o Direito à Alimentação está garantido não só pela Constituição Federal de 1988, mas também por diversos tratados internacionais de direitos humanos, entre eles o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) da ONU. O pacto tem 164 países signatários. Pelas projeções da organização, o Brasil não cumprirá nem os acordos nem a própria Constituição.
Boa parte desse cenário parte de um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o teto de gastos nos próximos 20 anos, “O Novo regime fiscal e suas implicações para a política de assistência social no Brasil“, publicado em setembro de 2016. Mas a Fian Brasil organiza diversos outros dados que sinalizam para uma retração dos direitos – entre eles o direito à alimentação – nas próximas décadas.
EM 20 ANOS, METADE DOS RECURSOS
Com a chegada de Michel Temer ao poder, a Fian aponta a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDS), logo no início do governo interino, como indicativo de que as políticas públicas que garantem o direito à alimentação vão diminuir ou até desaparecer.
Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, reduzindo o índice de extrema pobreza de 7,6%, em 2004 para 2,8%, em 2014. O mesmo ocorreu com o índice de pobreza, reduzido de 22,3% para 7,3%. Conforme o relatório, porém, os retrocessos começaram já durante o governo de Dilma Rousseff (PT).
O documento cita que, entre 2006 e 2015, a despesa do Ministério do Desenvolvimento Social passou de 0,89% para 1,26% do Produto Interno Bruto (PIB). A estimativa para os próximos 20 anos é a de que haja menos da metade dos recursos necessários para a manutenção do padrão atual:
– Em outras palavras, muito provavelmente, em 11 anos, o MDSA não terá recurso suficiente nem mesmo para fazer frente ao pagamento do Benefício de Prestação Continuada, sua única obrigação constitucional. A tendência é a de que ocorra um comportamento autofágico entre as áreas do MDSA, na medida em que o BPC pressionará os demais programas do Ministério, forçando, no limite, a extinção de vários programas e serviços.
NOVA PREVIDÊNCIA AMEAÇA SOBREVIVÊNCIA
O relatório também pontua as reformas movidas pelo Executivo Federal e aprovadas a toque de caixa pelo Congresso. Sobre a reforma da Previdência, a Fian Brasil diz que ela impõe um modelo “que, na prática, impossibilitará ao trabalhador acessar mecanismos de sobrevivência no seu período de maior vulnerabilidade”.
Em seu desenho original, diz o relatório, a Previdência Social chegava, em 2014, a 78% das pessoas com mais de 60 anos protegidas por algum de seus benefícios. Resultado: o Brasil havia reduzido drasticamente a pobreza, nesse segmento populacional, uma vez que apenas 8,76% das pessoas com 65 anos ou mais vivia com renda abaixo de ½ salário mínimo.
Outra ameaçada pelas reformas, a Previdência rural atende aproximadamente 9 milhões de famílias. Em 2014, essa renda específica equivalia a 70% da renda familiar para mais da metade das famílias atendidas.
Isso tudo sem falar dos efeitos da reforma trabalhista. Para a Fian, ela reduzirá o poder de acesso aos alimentos, implicando uma “verdadeira relativização da dignidade humana do trabalhador no Brasil”.
CORPORAÇÕES DO AGRONEGÓCIO
A Fian obseva que, durante os governos Lula e Dilma, o acesso à alimentação foi garantido ao mesmo tempo em que as corporações transnacionais do agronegócio eram fortalecidas por incentivos do governo. E que esses oligopólios estimulam a substituição dos alimentos in natura, que fazem parte das culturas alimentares regionais, por uma alimentação pouco saudável.
O consumo de alimentos industrializados promoveu a obesidade. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde, do IBGE, mostram que, entre 2005 e 2016, a prevalência de excesso de peso aumentou 14,2% na população masculina e 17,3% na população feminina. E que 57% da população adulta está com excesso de peso; 21,3%, com obesidade:
– A população brasileira segue convivendo com a desnutrição e com carências nutricionais específicas, um quadro ainda muito alarmante entre os povos indígenas e outros grupos em situação de vulnerabilidade, ao mesmo tempo em que enfrenta o crescimento de doenças crônicas não transmissíveis como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.
DEFESA DA AGROBIODIVERSIDADE
A partir do enfoque do Dhana, o Direito Humano à Alimentação, a Fian Brasil considera que os Estados deveriam promover sistemas sustentáveis de produção e consumo de alimentos“capazes de associar as necessidades nutricionais da população à preservação da agrobiodiversidade.
O relatório observa que os empresários ligados ao agronegócio são os que mais devem à União:
– Os grandes proprietários de terra, que representam apenas 1% dos estabelecimentos rurais do país, captam mais de 43% de todo o crédito agrícola – público e privado. Há um alto nível de inadimplência por parte dos grandes fazendeiros, independentemente de condições climáticas ou variações no preço dos produtos, o que tem resultado em escalonamento das dívidas, com parte do custo e risco da inadimplência sendo transferida para o governo brasileiro.
ELITIZADO, PRONAF EXCLUI COMUNIDADES
Criado em 1999, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) também está sob ameaça, constata a Fian Brasil. Aumentou-se a exigência de documentos, declarações e registros, “com uma clara tendência de elitização do Programa, o que acaba por excluir comunidades”.
Entre 2003 e 2015, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) comprou um total de R$ 6,4 bilhões, de aproximadamente 298 mil agricultores familiares, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) destinou um orçamento anual de R$ 1,24 bilhão para as compras diretas.
Em 2017, porém, o Programa sofreu uma redução de 39% em comparação com 2016, com a exclusão de mais da metade do público atendido. O relatório também lembra que o PAA tem sido alvo de recorrentes auditorias por parte dos órgãos de controle. E que, em junho de 2016, o governo revogou uma chamada pública que visava atender 930 associações e cooperativas.
– Também está em debate a possível redução de 30% para 10% da obrigatoriedade da compra de alimentos da agricultura familiar ou, ainda, a retirada total da obrigatoriedade, uma decisão que poderá vir a favorecer a iniciativa privada e a terceirização da alimentação escolar.
TERRA MERCANTILIZADA…
Outro retrocesso apontado pelo relatório da Fian Brasil refere-se à mercantilização da terra no Brasil, especialmente na expansão da fronteira agrícola da região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), uma área de 73 milhões de hectares – quase 10% do território brasileiro – em 337 municípios.
Existem nessa área 35 terras indígenas, 46 unidades de conservação ambiental, 745 assentamentos rurais e 36 áreas quilombolas declaradas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ou seja, não cabe todo mundo.
… E SEM REFORMA AGRÁRIA
Por fim, diminui a perspectiva de uma reforma agrária qualificada. Primeiro, com a tendência de municipalização. Em segundo lugar, porque a MP da regularização fundiária, a 759, favorece a titulação individual:
– O risco é o de que a titulação individual e a posterior comercialização de lotes da reforma agrária venham a se somar a mais um ciclo de concentração fundiária e que grande parte do patrimônio da reforma agrária até então conquistado seja revertido ao mercado privado de terras.
O orçamento do Incra para 2017 teve uma diminuição de R$ 840 milhões para o programa Reforma Agrária e Governança Fundiária. Nessa nova fase, diz a Fian Brasil, predomina uma concepção individualizante e focalizada, “que frustra a possibilidade de converter os assentamentos em áreas protegidas voltadas à produção de alimentos”.