Foto: John Hogg/Banco Mundial/Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)
Em meados do mês passado, fomos surpreendidos com várias notícias de que o Instituto de Investigação Agrária de Moçambique (IIAM) está pronto a avançar com a liberalização de variedades de milho geneticamente modificado, faltando apenas a autorização da Autoridade Nacional de Biossegurança de Moçambique.
Apesar de se referir que as conclusões resultam de um processo de investigação a decorrer há 16 anos, julgamos extremamente preocupante que se proponha a liberalização destas sementes com base apenas em ensaios confinados, cujo objectivo era testar a eficiência dos genes que conferem a resistência à seca e a insectos específicos, portanto uma investigação que não analisou os potenciais impactos destas sementes na saúde pública, na biodiversidade, nos sistemas alimentares, na segurança alimentar, etc. Daí que parece-nos bastante irresponsável e tendencioso avançar com estas afirmações sem considerar todos os demais aspectos referidos. É igualmente importante referir, que apesar destes ensaios decorrerem há vários anos, a metodologia e os resultados dos mesmos continuam inacessíveis ao público em geral, tanto é que vimos apenas as notícias, mas não o relatório da investigação.
A adopção de sementes geneticamente modificadas (GM) tem sido largamente publicitada como solução para os desafios de segurança alimentar, com promessas de aumento da produtividade, maior resistência a pragas e doenças, maior valor nutricional e mais recentemente até como uma das supostas milagrosas soluções à actual crise climática. No entanto, apesar dos inúmeros estudos já realizados sobre OGM’s e seus impactos ambientais e na saúde publica, até ao momento não há qualquer garantia da segurança dos OGM, e enquanto esta garantia não existir o governo não deve avançar com o uso de OGM, deve-se pautar pelo Princípio de Precaução previsto no Protocolo de Cartagena do qual Moçambique é signatário.
Para além dos potenciais impactos na saúde pública e na biodiversidade, há ainda que considerar os impactos socio-económicos da introdução e da promoção cega de sementes GM num país onde a grande maioria da população vive da agricultura camponesa e de subsistência, portanto, sem grande poder de compra destas sementes e dos seus pacotes de insumos que inicialmente costumam ser bastante subsidiados, mas uma vez dependentes destes, teremos de os comprar.
A liberalização do uso de sementes GM poderá alterar completamente os sistemas alimentares em Moçambique, agravado pelo facto de que a tecnologia e os OGM pertencem às corporações transnacionais que controlam todo o mercado de sementes e insumos agrícolas. Ao promover o uso de sementes GM colocamos o camponês dependente da compra destes às grandes corporações, e este para maximizar os seus rendimentos terá de comprar também os demais insumos. As implicações deste monopólio serão terríveis para os sistemas de sementes geridas pelos camponeses, pois perdem a sua capacidade de guardar e reutilizar as sementes e passam a ser totalmente dependentes da compra dos pacotes destas grandes empresas.
É mesmo isto que queremos para Moçambique? Não estaremos a desistir do eterno sonho de um dia alcançar a soberania alimentar? Quantos camponeses tem capacidade para comprar sementes e insumos agrícolas com regularidade?
Para além das questões já referidas, a introdução de sementes GM tem ainda implicações culturais, na medida em que interfere com as práticas tradicionais de conservação de sementes e com os sistemas locais de gestão de sementes, eliminando a diversidade de variedades de culturas alimentares e diminuindo o controlo dos camponeses sobre os seus recursos agrícolas. Em vez de promover a auto-suficiência e a autonomia, a adopção de sementes GM vai reforçar ainda mais a dependência de Moçambique de factores de produção externos, enfraquecendo a resiliência dos sistemas alimentares locais e exacerbando as vulnerabilidades às flutuações do mercado e aos choques ambientais. Irá igualmente exacerbar as desigualdades no sector agrícola, favorecendo os grandes agricultores comerciais e os grandes investidores em detrimento do camponês com acesso limitado a recursos e informação adequada.
É importante desconstruir os argumentos falaciosos utilizados para promover a liberalização dos OGM’s, como se este fosse o único ou o melhor caminho para resolver a questão da fome ou da produtividade agrícola. Por exemplo, num dos vários artigos dos orgãos de comunicação social sobre a informação de que o IIAM está pronto a recomendar a liberalização das sementes GM, foi referido que em Moçambique a produtividade do milho é de 900 kg/hectare, e logo de seguida foi ainda referido que com sementes GM podemos chegar a 10t por hectare, esta afirmação é deliberadamente enganosa, pois leva a crer que a adopção da semente GM é o único factor ou o mais importante para este aumento de produtividade, e não é. Uma breve pesquisa mostra que a produtividade com sementes GM na África do Sul varia de 5,33 to 7,25 t/ha a 4,00 to 6,40 t/ha para milho branco e amarelo respectivamente, e a única referência encontrada de produtividade de 10 toneladas por hectare foi referente aos Estados Unidos, referente à produtividade de um ano em particular e não resulta apenas do uso de sementes GM, mas de todo um pacote tecnológico que inclui as sementes mas claramente não se limita a estas. Ao reflectir um pouco mais sobre os exemplos escolhidos para nos convencer a aceitar a liberalização de sementes GM’s em Moçambique, podemos perceber claramente que ambos os exemplos utilizados referem-se a países e economias totalmente diferentes da nossa, onde predomina a agricultura industrial, altamente mecanizada e orientada para o mercado, muito diferente da realidade moçambicana onde predomina a agricultura de sequeiro para subsistência. É realmente muitíssimo diferente, tão diferente que se torna enganoso pretender comparar, e referir apenas a questão da semente.
Outra forma de nos convencer, é fazer parecer que são inúmeros os países na nossa região a seguir o mesmo processo, isto faz-nos sempre pensar que vamos ficar para trás, mas até isto é falso… pois dos 54 países africanos, apenas 9 destes realizaram recentemente ensaios com OGM, e somente 5 países africanos (Egipto, Burkina Faso, Sudão, África do Sul e muito recentemente Nigéria) usam sementes GM e alguns comercializam integralmente culturas geneticamente modificadas. Mas mesmo nestes países há inúmeras lições a tirar, a realidade é bastante diferente em cada um destes e nem todos usam sementes GM para produtos alimentares, em muitos não há consenso sobre o seu uso, e em muitos outros há um forte movimento de oposição à introdução de sementes GM.
A liberalização de sementes GM em Moçambique não pode ser encarada de forma tão leviana, nem tão pouco com base nas recomendações que resultam de uma única pesquisa focada apenas em determinar a eficiência dos genes em estudo, pois representa uma questão bastante complexa e controversa com sérias implicações de longo termo para a agricultura, o ambiente, a economia e a sociedade moçambicana.
Acreditamos que é essencial explorar abordagens alternativas ao desenvolvimento agrícola que priorizam as necessidades e realidades dos camponeses moçambicanos, e deve incluir um investimento sério e comprometido em promover práticas agrícolas sustentáveis que melhorem a fertilidade dos solos, conservam os recursos hídricos e promovem a diversidade agroecológica.
Alcançar a soberania alimentar em Moçambique requer uma abordagem holística que prioriza o empoderamento dos camponeses, a conservação da diversidade agroecológica e a promoção de práticas agrícolas sustentáveis. Para além disso é igualmente importante o fortalecimento dos sistemas locais de sementes e a promoção de métodos agrícolas agroecológicos que podem aumentar a resiliência dos camponeses e reduzir a sua dependência de insumos externos.
A decisão de introdução ou liberalização de OGM’s em Moçambique requer um processo de discussão pública, ampla, informada e abrangente, com a devida liderança e participação dos camponeses. Mais do que nunca, perante a multiplicidade de crises globais, o nosso caminho, as nossas escolhas devem priorizar a sustentabilidade, a equidade e o bem-estar das gerações presentes e futuras.
Nada para nós sem nós!