'Terras indígenas pertencem à União, e compete a ela fazer demarcações' (Brasil)
Em entrevista exclusiva, o novo presidente da Funai, Antonio Costa, fala sobre os desafios de sua gestão
Nomeado por Michel Temer em janeiro passado a presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai), Antonio Costa assumiu um cargo que estava sem comando efetivo desde junho do ano passado. Nesta entrevista exclusiva ao Canal Rural, o novo presidente do órgão fala dos desafios de sua gestão e das polêmicas em que o órgão está envolvido, como a demarcação de terras indígenas e a parceria entre índios e produtores rurais.
Canal Rural – Quais os desafios desta nova gestão?
Antonio Costa – O primeiro desafio é recompor a força de trabalho da instituição,
fortalecimento da instituição, que vem, ao longo dos anos, sofrendo cortes orçamentários. Oscortes são provenientes de uma conjuntura financeira, mas que estão impactando as ações da instituição. O outro ponto que eu considero relevante é que a Funai, ao longo do tempo, se afastou um pouco da relação com o Congresso Nacional, com deputados, senadores, prefeitos,vereadores, e essa relação é importante porque é através dela que a instituição poderá reivindicar uma melhoria no seu orçamento, nas emendas parlamentares. Outro ponto que encontro como desafio é a sustentabilidade. A Funai tem que trabalhar um pouco essa questão para dar aos povosindígenas, nas aldeias onde há condições de sustentabilidade, uma melhoria de condição para que esses povos possam vir ter a sua produção própria, sua renda própria e com isso eles alcançar umpatamar melhor de vida e economia.
CR – A PEC do teto dos gastos vai causar corte em 56 coordenações técnicas da Funai,
atingindo um quarto do quadro atual. Que impacto isso vai trazer?
Costa – Na verdade o impacto está diretamente ligado às aldeias, às terras indígenas, porque essas coordenações estão ligadas diretamente à reivindicação desses povos. Esse corte irá, estrategicamente, do ponto de vista de logística, dificultar muito a nossa relação em algumas coordenações. Do ponto de vista de estratégia terá, sim, um impacto muito negativo e nós estamos estudando a melhor maneira de não sermos tão impactados como estamos prevendo.
CR – O Ministério da Justiça publicou portaria alterando a demarcação de terras indígenas e possibilitando uma revisão do trabalho da Funai. A portaria foi revogada pouco tempo depois. Qual sua opinião sobre o episódio?
Costa – Naquela primeira proposta da portaria, ela feria um pouco a constitucionalidade da legislação que está regendo hoje a demarcação de terras. Por isso foi revista num momento oportuno. Naquela oportunidade, o (então) ministro Alexandre de Moraes entendeu que haveria uma necessidade de rever aquele posicionamento da portaria. Agora a outra portaria, a portaria 80 que veio a substituir, é uma portaria normal de um grupo de trabalho no qual a Funai se faz presente. Como a legislação não teve mudanças, eu não vejo nenhuma preocupação, porque o que a Funai vai fazer é o que ela já vem fazendo há mais tempo. Na realidade o Ministério da Justiça não vai rever essas demarcações. Haverá um estudo em conjunto e o maior ator nesse caso é a Funai. Então eu vejo como benéfica a participação da Funai no grupo de trabalho, porque a legislação não mudou e nem vai mudar por enquanto. Eu não vejo nenhuma preocupação nesse sentido.
CR – Uma nova legislação para demarcação de terras indígenas deve ser implantada ainda no governo Michel Temer?
Costa – O Congresso Nacional, que é o ponto básico dessas discussões, vem há bastante tempo tentando criar uma alternativa com relação à demarcação de terras. O nosso posicionamento é que deve, sim, ter alguma revisão, mas que essa revisão não venha a ferir os preceitos constitucionais, que essa revisão venha a atender parâmetros, tanto por parte das populações indígenas, tanto também dos proprietários de terras. O que nós não podemos é criar um conflito no momento em que o país passa por um momento grave na sua economia, um momento em que o país passa por uma crise também de base política, que a gente venha criar um conflito entre irmãos da terra, indígenas e proprietários, o que seria altamente desfavorável num momento de tanta instabilidade que nós estamos passando politicamente e economicamente falando. Como presidente, a minha meta é buscar o entendimento para que possamos colocar à mesa proprietários de terras e indígenas, e tentar buscar uma solução amigável para não haver essas batalhas judiciais, longas, que não se decidem. Nós temos que defender, como órgão responsável pela política indigenista, o que está dentro da nossa constituição hoje, já que não houve mudanças.
CR – A PEC 215 propõe transferir ao Congresso a decisão final sobre a demarcação de
terras indígenas. Qual a sua opinião a respeito?
Costa – Vejo que é uma prerrogativa do Congresso apresentar tais propostas, mas eu, do ponto de vista do que eu acompanho, não seria interessante no momento que essa proposta fosse aprovada devido à demanda que o Congresso Nacional tem em tantos projetos de lei. Já que as terras indígenas pertencem à União, do ponto de vista legal, compete à União fazer esses processos. A participação do Congresso nacional seria buscar uma alternativa no processo deindenização. Eu acho que a PEC 215 é uma proposta do Congresso, que eu respeito, mas nós temos que também olhar o lado da Constituição federal, porque para isso acontecer nós teríamos que reestruturar toda a parte que diz os direitos dos povos indígenas e isso seria muito difícil, tanto é que a PEC até hoje não avança porque encontra barreiras constitucionais nesse sentido.
CR – O que acha da CPI da Funai e do Incra no Congresso, que investiga possíveis
irregularidades nas instituições?
Costa – Verificando a CPI, posso dizer que contra a Funai mesmo não tem nada. É uma
instituição sólida e que, apesar de estar passando por essa fragilidade, até agora não se apurou nada de irregularidade na instituição. O que está se levando em consideração são aqueles possíveis posseiros que muitas das vezes procuram as associações indígenas para fazer essas parcerias. Agora o que for para ser apurado, como presidente da Funai nós vamos reparar, para que a CPI tenha uma resposta completa sobre as irregularidades que ela aponta. Mas até o momento eu não tenho visto nada de importante que venha ferir o nome Funai como instituição. Está mais ligada aos movimentos que circulam nas políticas indigenistas.
CR – No ano passado a CGU (atual Ministério da Transparência) apresentou relatório
mostrando fragilidades no trabalho da Funai, como falta de pessoal e transparência. A
Funai já tem concurso previsto para recompor o quadro de servidores?
Costa – O concurso irá recompor algumas áreas, mas não é o bastante. Nós precisamos
trabalhar para que não haja cortes, que não haja congelamento e que novos concursos venham recompor o quadro da Funai, porque temos áreas que são altamente técnicas. Vejo que há uma necessidade imperiosa do fortalecimento da instituição, porque as demandas cresceram muito em todo o país, as populações indígenas estão crescendo e a Funai, ao longo desse tempo, vem encolhendo. Então ela não tem hoje a capacidade de gestão como deveria ter, diante de tantas especificidades da sua missão.
CR – Como vê as parcerias entre índios e agricultores na produção de alimentos?
Costa – Nós temos, em algumas localidades essa prática do arrendamento. Eu vejo que é possível mudar isso quando você dá à própria comunidade as condições de produzir. Nós temos que inverter o papel. E hoje nós temos já a comunidade dos Parecis que veio acertar na Funai essa nova mentalidade. Eles arrendavam suas terras e agora já vão ser os próprios produtores de suas terras. É para isso que nós temos que caminhar. Agora, para que isso aconteça, é preciso ter recursos, equipamentos, tecnologia, para que essa tecnologia chegue ao campo indígena, e que eles sejam produtores. Nós temos índios que são coletores. A esses nós, se houver necessidade e compatibilidade da terra em que eles estão, nós temos que dar treinamento, ensinar como se planta, temos que colocar alternativas para que eles possam produzir. Eu vejo, também, em algumas populações alternativas como o ecoturismo, a pesca esportiva. Eu acredito muito nessas parcerias, porque eu vejo como alternativa das populações indígenas terem seu próprio negócio. O Estado vem ao longo do tempo perdendo sua capacidade de assistência. O assistencialismo se esgotou nesse processo todo, na crise econômica em que estamos vivendo.
CR – O senhor é contra a parceria entre agricultores e índios?
Costa – Eu não digo que eu seria contra, porque hoje é uma alternativa que eles têm. Eu acho que precisa ser revisto porque cria situações em que algumas comunidades não recebem o benefício na sua totalidade. Isso fica, às vezes, em um pequeno grupo e isso não é bom. Eu acho que temos que dar condições para que essas terras sejam produtivas e que os agentes da produção sejam os próprios índios. Aí eu vejo um caminho melhor.
CR – Antes de a ex-presidente Dilma Rousseff deixar o governo, houve autorização de
homologação de 14 terras indígenas. Isso fica mantido?
Costa – Já tivemos uma reunião nesse sentido na Casa Civil. A Funai está completando 50 anos neste ano e eu tinha solicitado que se pudesse fazer um ‘pacote de bondade’ no mês de abril para começar a retomar o diálogo com as demarcações de terras. Nós temos terras já preparadas para serem homologadas. E são terras que nós chamamos de terras limpas, sobre as quais não existe nenhum processo judicial, que não existe nenhum embaraço, nenhuma indenização a ser feita. Então eu vejo com bons olhos se o governo pudesse, através do presidente da República, homologar essas terras dando um passo de iniciativa e de boa vontade para o governo mostrar que quer resolver o problema das demarcações da terra.
CR – Após a mudança de governo, algo mudou na relação da Funai com o Conselho
Indigenista Missionário (Cimi) e outras entidades que defendem os direitos dos povos
indígenas?
Costa – Eu considero todas essas entidades parceiras. E são entidades críticas, o que faz parte desta gestão, porque é através da crítica que você busca solução. Eu já recebi aqui semana passada o Cimi para conversar e nossa proposta é manter o diálogo com todos os segmentos que queiram ser parceiros da Funai. Na situação que a Funai se encontra, ela não pode se dar ao luxo de renegar ou de deixar de atender ou se relacionar com nenhum parceiro, dentro da lei. Tudo que for dentro da lei, na forma da lei, de parceiros que queiram ajudar a instituição, nós precisamos, porque ela passa por momento de fragilidade muito grande, o que pode levar a um conflito no campo de ordem imensurável e nós não podemos deixar que isso aconteça.
CR – Além da demarcação de terras indígenas, qual é o trabalho da Funai na assistência a esses povos?
Costa – O trabalho da Funai começa no nascimento do índio, porque é a Funai que faz o registro dessa criança, dessa população que está homologada e criada. O papel da Funai é social, papel de estar presente nos conflitos, de estar recorrendo quando a população está passando por dificuldades até de alimentação. Nós temos parcerias em que a Funai às vezes é o único órgão que leva esses alimentos a essa comunidade. A Funai tem papel importante na demarcação dos conflitos dos empreendimentos, que hoje é um dos grandes desafios, como Belo Monte, como as obras da Vale, como outras obras no Paraná, como o porto de Paranaguá. A Funai é detentora da capacidade de amenizar esses impactos para que essas populações não venham sofrer. A Funai é a favor do progresso, mas desde que essas comunidades indígenas que cercam esses empreendimentos não venham sofrer problemas impactantes na sua forma de viver, em sua cultura e na sua própria relação com o Estado brasileiro
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