A falta de acesso aos direitos básicos também tem impulsionado a adesão ao garimpo, como observa o geógrafo Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Uma pessoa que está se afogando não tem autonomia para decidir se segura ou não na mão de alguém que estende o braço, ela não tem opção”, afirma o geógrafo.
Para Torres, é fácil abandonar um grupo com carências básicas de saúde, educação, transporte e dizer que é uma escolha para eles aceitar ou não explorar ouro em seus territórios. “Porque esses garimpos chegam levando como favor aquilo que é um direito. Se eles são privados do que é um direito, os Munduruku são coagidos a aceitar o que é favor. É o caminho que criou máfias no mundo inteiro”.
“Eles estão caindo em uma armadilha tão grande, que estão colocando o próprio inimigo dentro do território”, lamenta Alessandra sobre aqueles que aderiram ao garimpo. Para a líder Munduruku, os brancos entram no território, com seus advogados, para convencer os indígenas de que explorando ouro eles teriam liberdade e o próprio dinheiro. “A gente sempre diz que não é assim, que vai ser pior para gente”.
A mineração no vale do Tapajós é um negócio bilionário. Em reportagem publicada em novembro de 2019, a Repórter Brasil apurou que os donos de garimpos de Itaituba investiram entre R$ 300 milhões e R$ 600 milhões apenas em maquinaria nos seis anos anteriores. Para se ter uma dimensão da extensão desse mercado, só em Itaituba são cerca de 60 mil garimpeiros e mil pistas de pouso para garimpo.
A Agência Nacional de Mineração estima que existam, na Bacia do Tapajós, 850 garimpos legalizados e outros 2 mil ilegais que seriam responsáveis pela comercialização de cerca de 30 toneladas de ouro por ano. O faturamento dos garimpos ilegais no Brasil varia entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões anuais.
Mas, para Kabaiwun, os Munduruku não ganham nada com o garimpo. “Os pariwat [brancos] estão explorando nossos parentes, nenhum parente está ficando rico. Eles só levam bebida e prostituição para dentro do território, essa invasão não serve para nós. É como a gente fala, quem perde somos nós”.
As máquinas usadas para escavar os rios em busca de ouro podem custar entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão. “Hoje, na Amazônia, acho mais correto falar em mineração do que em garimpagem. Porque, especialmente nos territórios Munduruku, é realizado algo típico de mineração complexa, que exige alto investimento”, explica Gabriel Dalla Favera de Oliveira, procurador do MPF de Santarém. “Já são mais de 20 focos de mineração irregular só no interior da TI Munduruku e há indícios de mais de 100 equipamentos pesados de exploração”.
O perito criminal Gustavo Geiser, da Polícia Federal de Santarém, explica que normalmente os donos de garimpo vêm de outras regiões e que, nos seus quase 15 anos de atuação na fiscalização de garimpos ilegais em terras indígenas, nunca se deparou com nenhum caso de indígena que fosse proprietário de garimpo. “Não acreditamos que os indígenas tenham patrimônio para ter sociedade ou comprar uma máquina própria, porque é muito cara”, afirma.
Além do garimpo ilegal, o território Munduruku está entre as terras indígenas do país mais visadas por grandes mineradoras. Na última década, segundo levantamento da Agência Pública, entre os povos que tiveram processos minerários em suas terras, os Munduruku foram os que obtiveram o maior número, sendo mais da metade para explorar ouro. Outro levantamento, do Observatório da Mineração, aponta que a gigante Vale tem 52 requerimentos para explorar a Terra Indígena Munduruku.
“Essas empresas falam que vão respeitar, que não vão [atuar] em nenhuma terra demarcada, mas eles já estão lá, estudando, [fazendo o] mapeamento”, denuncia Alessandra. “Antes já era difícil, e agora com este governo – em que até os territórios que são demarcados, homologados e registrados estão correndo risco – muitos pariwat já estão lá dentro, imagine os territórios que não são demarcados”. A TI Sawré Mbuyu, autodemarcada em 2014, ainda não está homologada.
Apesar das altas cifras envolvidas, está enganado quem pensa que essa destruição é compensatória em termos financeiros. O MPF apontou que os prejuízos decorrentes da extração de minério superam em 12 ou mais vezes o valor obtido com a exploração minerária por conta da devastação ambiental. “E, nesse caso, evidentemente, o prejuízo é todo revertido em desfavor das comunidades afetadas e indiretamente da sociedade brasileira. Sequer há a transferência indireta para sociedade porque não se recolhe imposto, já que é uma atividade ilegal e escusa”, explica o procurador do MPF.
De acordo com relatório do projeto Monitoring of The Andean Amazon Project, entre 2017 e 2019, mais de 3 mil hectares do território Munduruku foram destruídos para dar espaço ao garimpo ilegal. No primeiro quadrimestre de 2020, segundo o Greenpeace, houve um aumento de 58% no desmatamento para garimpo na TI Munduruku comparado ao mesmo período do ano anterior.
“Cada árvore que está sendo derrubada, que está sendo morta ali, era uma vida, que dá alimento para nossos filhos. Ouro não serve para nada, ninguém come ouro, a gente come é fruta, a gente come buriti, açaí…”, lamenta Kabaiwun.
Se o ouro não é comestível, o mercúrio usado nos garimpos acaba entrando na cadeia alimentar. Em laudo da Polícia Federal, a estimativa é de que os garimpos ilegais despejem, por ano, cerca de 7 milhões de toneladas de sedimentos no rio Tapajós, grande parte composto por mercúrio – que contamina peixes e que, no corpo humano, gera várias doenças. Como muitas das lideranças Munduruku já imaginavam, a corrida pelo ouro está envenenando seu povo.
*Colaborou Felipe Garcia
Reportagem produzida com o apoio da International Women’s Media Foundation’s Howard G. BuffettFund for Women Journalists.