“Devemos falar do endividamento de cada família, que está vendendo sua casa, vendendo seu carro, porque o sistema público não está garantindo medicamento, não está possibilitando acesso à educação”.
“O que vemos são mulheres cada vez mais empobrecidas, sobrecarregadas, adoecidas psicologicamente, vítimas de ódio e preconceito e com quase nenhum tempo para lutar pelo resgate dos seus direitos e por novos direitos, tudo isso agravado pela pandemia”.
“Temos, ao longo da história, um crescimento de lucros, baseado na expansão da monocultura em larga escala, que aumenta a devastação ambiental em todos os países, que expulsa os trabalhadores rurais das suas terras e não contribui em nada para melhorar a vida do povo e da natureza”.
“As dívidas acabam sendo um impulsionador das privatizações e gerando mais precariedade nas classes populares, afetando a moradia, o trabalho, a saúde e a alimentação”.
“O processo de privatização das águas, principalmente para a agropecuária e os monocultivos, impactou tanto na vida das pessoas mais pobres, que pagam mais caro, quanto na natureza”.
Longe de ser mera coincidência, a conexão entre os depoimentos da paraguaia Mercedes Canese, das brasileiras Magnolia Said e Marina Santos, da argentina Natália Salvático e do uruguaio Martín Sanguinetti evidencia algumas das profundas consequências das dívidas socioambientais e financeiras nos segmentos mais vulnerabilizados dos diferentes países do Cone Sul.
Com mediação de Francisco Vladimir, articulador do Cone Sul da Rede Jubileu Sul/Américas, que estabeleceu pontes de diálogo entre as diversas abordagens, o segundo painel do Ciclo de Debates sobre lutas e desafios atuais do Cone Sul, realizado na tarde da segunda-feira (12/04), abordou a centralidade das dívidas na região e a sua relação com um modelo de desenvolvimento que promove exclusões e desigualdades.
Integrante da Frente Guasu, Mercedes Canese fez uma contundente crítica às dívidas resultantes das hidrelétricas binacionais de Itaipu (Brasil-Paraguai) e Yacyretá (Argentina-Paraguai) nos povos desses países. “Essa é uma dívida odiosa que prejudica aos povos paraguaios, argentinos e brasileiros porque seguimos pagando uma dívida que deveria ser zero”, frisou.
Mercedes, que é ex-vice ministra de Minas e Energia do Paraguai, ressaltou que a dívida de Itaipu e Yacyretá são também sociais e ambientais, pelos impactos na natureza e em comunidades tradicionais. “Todo um ecossistema foi inundado, bosques e terras férteis que eram protegidas foram destruídas. Muitas pessoas dos três países, especialmente camponeses e indígenas, foram desalojadas e perderam suas formas de vida porque foram colocadas em territórios com características diferentes dos seus de origem. Se calcula que apenas dentre os indígenas, foram mais de 70 povos desalojados e que não tiveram territórios de iguais características restituídos”, denunciou.
Além dos povos originários, as dívidas atingem de forma mais violenta as mulheres trabalhadoras. “Quando se fala em dívida ecológica, dívida financeira, dívida étnico-racial, dívida social e dívida de gênero, as mulheres são as principais vítimas. E esse conjunto de dívidas não para de crescer”, enfatizou Magnolia Said.
Dívidas, modelo de desenvolvimento e capitalismo
Advogada e integrante da Coletiva de Mulheres da Rede Jubileu Sul Brasil, Magnolia destacou como o modelo de exploração capitalista – que tem na dívida pública um dos seus principais instrumentos de dominação – se reproduz a partir das violências contra as mulheres.
Segundo Magnolia, as medidas de ajustes propostas pelo Banco Mundial e outras instituições financeiras internacionais aprisionaram as mulheres pela dívida de diferentes formas, “quando retiraram das agricultoras familiares a possibilidades de acesso à terra com a modernização da agricultura; quando retiraram a possibilidade de acesso à saúde, à água, ao saneamento, a partir dos processos de privatização; quando não ofereceram proteção integral diante da violência doméstica e de gênero de um modo geral; e quando retiraram das mulheres as perspectivas de emprego com garantias trabalhistas”.
Para Marina dos Santos, que integra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Via Campesina, as dívidas sociais, ambientais e financeiras do Cone Sul guardam relação direta com “um modelo de expansão que existe apenas para beneficiar as grandes corporações transnacionais, que controlam os segmentos fundamentais do setor agrícola, máquinas, sementes, agroquímicos, ração animal e a própria comercialização dos produtos”.
Ao lembrar que o Cone Sul reúne importantes reservas mundiais de água, petróleo, terra, minérios e biodiversidade, Marina aponta que “o agro, o hidro e o mineral negócio são chamados a disputar esses recursos com os povos para garantir os seus lucros”. Como consequência, ela diz, “temos aumento da violência e da violação de territórios de pescadores, dos povos das florestas, camponeses, da agricultura familiar”.
Avaliação semelhante é feita por Natalia Salviático, da organização Amigos de la Tierra, na Argentina, ao dizer que “o modelo de desenvolvimento capitalista se alimenta da mercantilização da natureza e da financeirização de tudo que nos rodeia, com o sistema financeiro ficando onipresente em toda a nossa vida”.
Além da dívida pública, Natalia alerta como os acordos e tratados de livre comércio são instrumentos de produção das desigualdades. Citando o caso do Acordo Mercosul-União Europeia, ela diz que “tanto as dívidas quanto outros mecanismos da arquitetura financeira internacional, como os tratados de livre comércio, são condicionantes estruturais ao modelo de desenvolvimento e se baseiam numa falsa cooperação internacional, já que são tratados entre desiguais”.
Membro da Comuna, cooperativa de trabalho uruguaia, Martín Sanguinetti apresentou diversos dados que demonstram a intensificação do uso concentrado dos solos e da água em seu país nas últimas duas décadas.
Nesse período, de acordo com estudo realizado pela Comuna em parceria com a FFOSE (Federação de Funcionários da empresa uruguaia de obras sanitária), a agricultura de monocultivo passou de quase inexistente para a ocupação de 1 milhão de hectares; e 86% da água do país é utilizada para a agropecuária e somente 9% para produzir água potável.
Outro dado preocupante exposto por Martín é que, entre 2000 e 2012, a quantidade de fungicidas, herbicidas e inseticidas importados no Uruguai passou de menos de 4 mil toneladas para mais de 19 mil toneladas.
A necessária resistência popular
Mas como onde há poder, há resistência, Martín salientou que “desde o início da privatização dos serviços de água, nos anos 1990, várias organizações territoriais e nacionais começaram um processo de articulação que culminou no Plebiscito da Água em 2004, onde se reformulou o artigo 47 da Constituição”.
Fazendo referência a um depoimento de Eduardo Galeano, que à época afirmou que “o plebiscito da água foi uma vitória contra o medo”, destacou itens do artigo 47 da Constituição uruguaia que exemplificam como o resultado do Plebiscito representou a consolidação de outra concepção sobre a água.
Dentre outras questões, pelo referido artigo, a política nacional de água deve se basear no ordenamento do território, conservação e proteção do meio ambiente; os usuários e a sociedade civil devem participar de todas as instâncias de gestão e controle dos recursos hídricos; e a principal prioridade do uso da água é para o abastecimento das populações.
O recado das mobilizações pelo Plebiscito da Água em 2004 no Uruguai é o mesmo recado dos atuais atos de rua que ocorrem no Paraguai em defesa da saúde pública e de tantos outros processos de luta no Cone Sul: “definitivamente, são os povos que salvam os povos”, como disse Mercedes Canese, em suas primeiras palavras na atividade do painel.
Rumos e esperanças
Esperanças, perspectivas, rumos e organização popular é o tema do terceiro e último painel do ciclo de debates, neste 26 de abril (segunda-feira), também às 17h com transmissão na página do Jubileu Sul Brasil e Jubileu Sul/Américas. Inscreva-se: https://us02web.zoom.us/webinar/register/WN_W9BT2j1BSKuxh3iSKaIFpA para assistir na plataforma Zoom com tradução simultânea e emissão de certificado aos que participaram ao menos de dois dos três painéis.
O encontro virtual visa ao esperançar, o sentido das organizações populares e pensar em uma agenda comum que fortaleça os movimentos como uma sub-região do Cone Sul. Em pauta as lutas e mobilizações em torno da nova Constituição no Chile, do movimento campesino, e por terra, teto e trabalho pela Semana Social Brasileira
Entre os painelistas convidados estão as chilenas Ingrid Conejeros Montecino, professora e candidata do Povo Mapuche para a nova Constituição chilena, e a militante Vania Ochoa, da Marcha Mundial de Mulheres Fio Fio; o paraguaio César Paredes, do Movimento Campesino do Paraguai e Dom Valdeci Santos Mendes (Brasil). A mediação é de Rosilene Wansetto, secretária executiva da Rede Jubileu Sul Brasil.
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