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A questão agrária no Brasil e na América Latina é politicamente elaborada diante da concentração fundiária e da correspondente dificuldade de acesso dos camponeses à terra. As experiências de despejo têm sido marca constitutiva do imaginário social e da vida de inúmeros trabalhadores e trabalhadoras rurais em todo o território brasileiro (MARTINS, 1983, 2003). Trata-se de uma experiência dramática e que, dada a sua recorrência e intensidade, é constitutiva da experiência dos despossuídos rurais no Brasil. Fonte de sofrimento, as ações de despejo desarticulam relações sociais e produzem desenraizamento territorial e cultural, mas ao mesmo tempo ensejam a articulação das resistências individuais e coletivas e novas formas de reinserção social.
A história de vida[1] de Roseli Borges, camponesa conhecida como Dona Rosa, ilustra de forma emblemática essa precariedade que marca o acesso dos camponeses brasileiros à terra e, ao mesmo tempo, as resistência com que reagem em meio a essas situações. Por meio de suas narrativas de experiência de vida, buscaremos articular um conjunto de histórias e experiências que, da perspectiva da rememoração, compuseram o passado recente dos camponeses no estado do Rio de Janeiro e que continuam a se afigurar no presente, mostrando ser o despejo uma sombra que continua a ameaçar inúmeros trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Sendo Dona Rosa uma mulher negra, pretendemos desenvolver uma análise com perspectiva interseccional de classe, gênero e raça (CARBYN, 1982; COLLINS, 2000) de forma a evidenciar as diferentes formas de desigualdade que tencionam as correlações de força e poder na sociedade brasileira, em particular no campo. Além disso, o fato de Dona Rosa não ter desempenhado papéis de liderança política ao longo de sua vida nos permite dar visibilidade a histórias de vida das “pessoas comuns”, tantas vezes invisibilizadas, já que na maioria das vezes os estudos priorizam quem mais se destacou nas lutas.
Aos 66 anos de idade, Dona Rosa é hoje uma atingida pelo projeto de construção da barragem do Rio Guapiaçu, investimento estatal que mais uma vez acena com a possibilidade de ter que sair da terra em que desenvolveu sua vida. Ao sintetizar o despejo enquanto elemento central de sua experiência de vida, Dona Rosa enfatiza elementos que ilustram a condição de subalternidade que marca os camponeses em geral:[2]
[...] a única coisa que eu entendo é a exploração. A única coisa que eu entendo é o despejo, a covardia.
O artigo baseia-se em entrevistas com Dona Rosa, documentos de diferentes arquivos, notícias de jornal e entrevistas com demais camponeses das regiões analisadas. Por meio dessas fontes, foi possível apresentar os diferentes contextos sociais e os distintos períodos em que viveu Dona Rosa: o pré-golpe, quando ainda era criança; a ditadura empresarial-militar[3] (1964-1985) e os novos dramas e resistências desde 2013/14.
[1] Segundo Camargo (1984), a história de vida é uma abordagem rica nas ciências humanas ao permitir a compreensão da cultura a partir das vivências e elaborações do ator estudado, uma compreensão “por dentro” que se realiza pelo contato intensivo com o ator observado, estudado e escutado, de tal modo a tornar possível a compreensão da cultura através de sua história de vida e de sua percepção. História oral e história de vida possibilitam, assim, reconstruir eventos históricos e revelar a lógica, as conexões e o cenário social no qual esses eventos se desenrolam, articulando memória e biografia, vivência e história (CAMARGO, 1984; BOSI, 1994; FRANÇOIS, 2006).
[2] Dona Roseli foi convidada para contar sua história a uma turma de professores e professoras da rede pública de ensino do município de Cachoeiras de Macacu. Sua presença fez parte da atividade do Projeto de Extensão Memória das Lutas pela Terra no Rio de Janeiro, voltado para a capacitação de professores da rede municipal e estadual do município de Cachoeiras de Macacu, realizado no segundo semestre de 2017 e também no primeiro semestre de 2018. O projeto foi realizado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); Universidade Federal Fluminense (UFF); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); Universidade Salgado Filho; Secretaria Municipal de Educação de Cachoeiras de Macacu; Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Grupo de Trabalho em Assuntos Agrários da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seções Rio e Niterói (GT Agrária – AGB); Coordenadoria Estadual por Memória, Verdade e Educação em Direitos Humanos da Superintendência de Promoção dos Direitos Humanos, da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos do Rio de Janeiro; Sociedade Clube da Esquina de Amigos do Arquivo Histórico de Cachoeiras de Macacu. O projeto pode ser acessado no sítio digital:
[3] Conforme apontado por Melo (2014), a opção por caracterizar o período ditatorial e o golpe como “empresarial-militar” busca qualificar de forma mais detalhada o grupo social que atuou de modo decisivo para a sua realização. Baseado em um conjunto de autores, Melo (2014) enfatiza a organização deste setor em prol da realização do golpe e da implementação de um conjunto de reformas e práticas que colocaram em vigor um projeto de sociedade capaz de levar adiante os interesses das classes empresariais do campo e da cidade, nacionais e transnacionais. Deste modo é possível superar as dificuldades colocadas pelo termo “civil”, mais genérico que o termo “empresarial”, além de apontar categoricamente o caráter de classe tanto do golpe quanto da ditadura.