Autor:EL País
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/11/opinion/1512997340_266770.html
O município de Senador José Porfírio é sede do maior projeto de mineração de ouro a céu aberto, proposto por uma corporação canadense, a Belo Sun. É liderado por um prefeito do PSDB, Dirceu Biancardi, que em 29 de novembro trancou professores, alunos e convidados dentro de um auditório da Universidade Federal do Pará, em Belém, impedindo o debate acadêmico e transformando o lugar em palanque para defender a mineradora canadense. De 2013 a 2017, o desmatamento no município aumentou mais de 500%. Parte deste aumento é atribuído por analistas a outro megaempreendimento: a hidrelétrica de Belo Monte. E, para completar este quadro, a atual secretária do Meio Ambiente do município, Zelma Campos, está ameaçada de morte.
A disputa em torno de Belo Sun deveria estar no centro do debate público no Brasil. Mas não está. O que acontece na Amazônia tem efeitos no clima do país e do planeta, mas a Amazônia segue longe demais. Como tão poucos se importam, os violentos se sentem à vontade para agir violentamente, quem discorda é repelido ou mesmo ameaçado e a tensão tornou-se um estado permanente na região.
O que acontece hoje na área que a mineradora Belo Sun quer se instalar e no município de José Porfírio é o retrato de um cotidiano de exceção que vai estendendo raízes cada vez mais longas, a ponto de um prefeito do qual a maioria do Brasil nunca ouvira falar interditar o debate de uma universidade federal na capital do Pará. E também um país em que outras cisões, cuidadosamente articuladas, estão em curso.
O momento é grave e os brasileiros, do sul ao norte, precisam compreender algo que deveria ser ensinado nas escolas: na Amazônia, acontece primeiro.
Em 6 de dezembro, o Tribunal Regional Federal da 1a Região suspendeu por tempo indeterminado o licenciamento de Belo Sun e determinou que os povos indígenas sejam ouvidos como determina a Constituição brasileira e a legislação internacional. Esta foi uma vitória, mas uma vitória que todos os envolvidos sabem que pode ser apenas temporária. Se a mineradora canadense avançar sobre o ouro da Amazônia, a Volta Grande do Xingu será duplamente impactada e ninguém poderá prever o tamanho do efeito na floresta, nos rios e na alteração do clima. É correto afirmar que não se destrói a floresta aqui sem perder qualidade de vida em toda parte.
Hoje, Belo Monte converteu-se numa obra ligada à corrupção, à violência contra os povos da floresta e à devastação da Amazônia. Altamira, a principal afetada pela construção da barragem, tornou-se a cidade (com mais de 100 mil habitantes) mais violenta do Brasil. À Belo Monte já está colado um significado negativo. Mas enquanto ela foi construída, os que denunciavam os acordos e as violações eram chamados de “inimigos do progresso” e a maior parte da população brasileira ou defendeu a hidrelétrica ou se omitiu.
O Canadá, país que posa de bom moço no mundo, precisa se manifestar sobre o que está sendo feito em seu nome na Amazônia brasileira
A história hoje se repete com Belo Sun, defendida nos eventos públicos por representantes da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará, a licenciadora da obra, e pelo prefeito de Senador José Porfírio com ardor igual ou superior aos próprios representantes da mineradora canadense. A ênfase é no dinheiro que entrará para os cofres públicos, no “progresso” para uma região “pobre” e nos supostos empregos. O agravante é que a história se repete num governo dominado pelos que se chamam de “ruralistas”, fiadores de um presidente denunciado duas vezes e salvo duas vezes por um Congresso corrupto. Se os atos de exceção têm se repetido no centro-sul do país, é possível alcançar o tamanho da desenvoltura de grileiros e desmatadores na região amazônica.
Sobre Belo Monte, ainda se podia alegar que era uma obra para produzir um bem público – energia –, embora já estava bastante claro que o objetivo principal era outro. E podia se alegar também que era uma obra do Estado construída por empreiteiras privadas e explorada e administrada por um consórcio de empresas públicas e privadas. E sobre Belo Sun? Qual é o benefício de arrebentar ainda mais a floresta e especialmente uma região que já sofreu grande impacto para que uma empresa canadense possa extrair toneladas de ouro e depois sair do país deixando uma montanha de rejeitos tóxicos? Seria obrigatório que o Canadá, país que posa de bom moço no mundo, se manifestasse sobre o que está sendo feito em seu nome na Amazônia brasileira.
A disputa em torno de Belo Sun, porém, está fora do debate central do país, tomado pela Lava Jato e pela eleição de 2018. Quem faz a principal resistência à implantação de uma mineradora canadense que pretende tirar dezenas de toneladas de ouro de uma floresta que tem impacto sobre o planeta é um punhado de homens e mulheres indígenas, especialmente os corajosos Jurunada aldeia Muratu, Terra Indígena de Paquiçamba, na Volta Grande do Xingu. Mas eles estão sozinhos demais.
Num país com tamanho de continente, parece que poucos além dos indígenas enxergam que a mina é a floresta – e não o ouro que se vai.
1) Onde fica o projeto que pode destruir a floresta?
Quando o prefeito Dirceu Biancardi (PSDB) invadiu o auditório da Universidade Federal do Pará (UFPA), com sua comitiva formada em grande parte por servidores do município, impediu o debate acadêmico e trancou professores e alunos dentro da sala, ele disse uma frase capciosa em seu discurso em defesa de Belo Sun e contra todos que questionam o projeto da mineradora canadense. Ele afirmou o seguinte: “Tem gente que conhece mais a Europa do que o município de Senador José Porfírio e quer tomar a decisão por nós”.
Ao fazer essa afirmação, que foi recebida com palmas e gritos, o prefeito tinha vários objetivos. Mas ele tem razão ao dizer que os brasileiros não conhecem Senador José Porfírio. Conhecer uma cidade no sudoeste do Pará não é para todos. Mas se algo que pode afetar tão profundamente a maior floresta tropical do mundo está por acontecer, é preciso parar e olhar bem para o mapa para começar a compreender a complexidade e o risco do que está em jogo. E ter conhecido “a Europa” pode inclusive ajudar a compreender Senador José Porfírio. Ninguém perde quando o mundo fica mais amplo dentro de si.
Senador José Porfírio é o único município com território descontínuo do Pará. Para ir da sede do município até a outra parte é preciso cruzar o território de outros. A região onde Belo Sun pretende extrair ouro tem antigas vilas de garimpo, com décadas de mineração artesanal, praticada por pequenos garimpeiros que vivem à beira do Xingu. E é cercada por terras indígenas.
Basta olhar onde está o desmatamento e onde está a área mais preservada, para perceber quem preserva e quem desmata. A parte mais preservada da floresta hoje vem sendo ferozmente grilada e devastada por diferentes grupos. A construção de Belo Monte, seguida agora por Belo Sun, acirraram os conflitos e trouxeram novos atores, como sempre acontece em qualquer projeto na Amazônia. Mas são os sinais de Brasília que fazem com que grupos bem consolidados na região se sintam cada vez mais à vontade para botar a floresta abaixo e distribuir ameaças de morte como se dessem bom dia.
2) Quando o prefeito transforma a universidade em palanque e professores e alunos em reféns
Em 29 de novembro, o prefeito Dirceu Biancardi (PSDB) tomou conta do auditório da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde se realizaria a segunda parte do evento “Veias Abertas da Volta Grande do Xingu”. Levou com ele algumas dezenas de pessoas, muitas delas reconhecidas como servidores do município. Sentou-se à mesa e discursou, calando e intimidando a professora Rosa Acevedo Marin, pesquisadores e convidados, e impedindo-os de sair da sala. Um episódio de violência explícita que está sendo investigado pelo Ministério Público Federal.
Este não é apenas um ato autoritário do prefeito de um município amazônico desconhecido da maioria dos brasileiros. Mas um ato articulado com discursos que têm atravessado o Brasil, como o próprio ataque à universidade e ao que ela representa.
Nada é acaso nesse personagem. Quem assiste ao vídeo disponível na Internetvê alguém com um chapéu de homem rural, marcando propositalmente que ele não pertence àquele mundo da universidade, mas a um outro. Ele está ali impedindo que acadêmicos falem sobre os riscos e as consequências de Belo Sun. Seu argumento é que só quem vive na região compreende os problemas da região. E, assim, só quem vive na região pode falar – e, principalmente, pode decidir.
Este é um discurso que tem se tornado cada vez mais frequente em audiências e encontros públicos: a oposição entre o mundo dos intelectuais e o mundo dos que suam. E ele contém armadilhas.
Embora o prefeito afirme representar a voz da população do seu município, ele não permite qualquer divergência, rompendo assim toda possibilidade de debate democrático, e, portanto, de escuta real. Ao se colocar como o único veículo do desejo do povo, ele silencia a voz do que ele chama de “povo”. Uma das mulheres presentes deixou clara essa contradição ao gritar: “Só quem fala por nós é o prefeito!”. Trata-se, portanto, de uma reedição contemporânea do: “Só quem fala por nós é o coronel”.
A pesquisa que seria apresentada, chamada “Nova Cartografia Social dos Povos Tradicionais da Volta Grande do Xingu”, trata tanto dos efeitos da construção da hidrelétrica de Belo Monte como de Belo Sun. Ela foi feita junto aos moradores da área atingida, mas essa voz foi silenciada pelo prefeito, que se impôs como o único capaz de expressar a voz de quem lá vive, supostamente legitimado em seu intento pela claque trazida por ele para desempenhar o papel de “o povo”.
Na audiência pública de 23 de novembro, na Vila da Ressaca, tradicional lugar de garimpo artesanal, os barcos que chegavam trazendo as organizações do movimento social e ambiental, assim como representantes da prelazia do Xingu, foram literalmente recebidos a chutes. Gritos e faixas apontavam que não eram bem vindos, buscando convencer de que a população está coesa no seu desejo de que Belo Sun se instale. Mas quem conhece a região e seus moradores há anos pôde perceber que muitos estavam calados e com medo. E velhas lideranças encontram-se hoje ameaçadas.
Quando o prefeito invade a universidade e silencia a pesquisa acadêmica, ele está realizando dois gestos simultâneos. O primeiro é um serviço de prevenção, para garantir que os interesses de Belo Sun não sejam ameaçados por investigações científicas sobre os impactos da mineração industrial numa região já impactada por Belo Monte.
No caso de Belo Monte, parte da comunidade acadêmica se moveu, antes do início da obra, com o que foi chamado de “painel de especialistas”, que conseguiu pouca repercussão junto a uma imprensa claramente favorável à construção da hidrelétrica. Mas, a partir de 2016, a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) reuniu pesquisadores de diversas áreas e universidades e fez uma intervenção importante sobre os efeitos de Belo Monte, tornando-se um jogador influente na concepção de um território ribeirinho para os expulsos pela barragem, muitos intensamente traumatizados e ainda à espera de recompor seu modo de vida.
Os defensores de Belo Sun querem evitar que isso se repita, inclusive porque é muito mais fácil mostrar também cientificamente as consequências de Belo Sun para o meio ambiente do que era no caso de Belo Monte. E muito mais indefensável do ponto de vista político e simbólico, já que uma era supostamente para produzir energia – e a outra é extração de ouro por uma empresa canadense.
Assim, deslegitimar a comunidade científica é um ponto com um nó bem articulado. E a forma encontrada para fazer isso é justamente opor saberes que deveriam estar alimentando-se mutuamente, já que tanto acadêmicos da universidade como os povos que vivem na Volta Grande do Xingu pensam e constroem experiências e conhecimentos que se complementam.
O segundo gesto dessa cena está conectado ao que vem acontecendo no Brasil com as universidades públicas. Não só a tentativa de torná-las “menos públicas”, defendendo que custam caro e que parte da comunidade estudantil deveria pagar pelos estudos, mas principalmente uma progressiva criminalização da comunidade acadêmica e das universidades. Entre os exemplos mais recentes, pode ser citada a condução coercitiva (retirar as pessoas de surpresa de suas casas e levá-las à força para prestar depoimento) de professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 6 de dezembro.
Assim como o exemplo com desfecho mais trágico, representado pelo suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que se jogou de um prédio em outubro, dias depois de ter sido preso, despido e humilhado, e, em seguida, proibido de entrar na universidade, em nome de uma investigação que ainda não disse a que veio. Num Brasil cada vez mais arbitrário, a universidade vai sendo criminalizada e silenciada.
Há um fato interessante que não deve passar despercebido. Houve várias manifestações, entre cartas conjuntas de intelectuais brasileiros e artigos na imprensa, protestando e alertando contra a criminalização da universidade num momento em que se acentua o cotidiano de exceção no Brasil. Mas as manifestações mais importantes não mencionaram a interdição do debate da UFPA pelo prefeito de Senador José Porfírio.
Pode se alegar que são forças diferentes que intervieram nas universidades. Mas é possível responder que intelectuais que evocam o papel fundamental da universidade numa democracia têm a obrigação de compreender como essas forças estão hoje bem articuladas no Brasil atual. E, portanto, citar o caso da UFPA em suas manifestações. Do contrário, as Amazônias seguirão no lugar em que a colocaram aqueles que as exploram e as colonizam ainda hoje, em 2017.
Nesta conta não se pode esquecer ainda a responsabilidade das universidades, que no geral fizeram e fazem menos do que podiam e podem para estabelecer laços com a comunidade e democratizar o conhecimento produzido. Nem se esquecer que parte da comunidade acadêmica demorou para entender ou mesmo nunca entendeu que o sistema de cotas era também a possibilidade de resgatar a vocação de uma universidade, ao ampliar a diversidade das vozes e a própria representatividade da universidade num país democrático, retardando um processo que poderia estar mais avançado.
É também porque mais pobres e negros estão lá hoje que a universidade sofre ataques e tentativas de deslegitimá-la. Mas é também porque esse processo está muito atrasado que a universidade chega a este momento perigoso do Brasil previamente enfraquecida e facilmente atacável.
O prefeito de Senador José Porfírio não está fora dessa conta. Assim, ele se coloca como um igual ao povo da Volta Grande do Xingu, quando na prática está muito mais próximo de uma parcela dos grileiros e madeireiros que avançam no município e com frequência oprimem esse mesmo povo. O objetivo é afastar a universidade como um participante legítimo do debate sobre Belo Sun. Vale a pena prestar atenção às palavras do prefeito do PSDB:
“De conversa bonita o povo tá cheio (...). Não temos saúde digna, não só em Senador mas na região inteira. (...) O garimpo do Itatá, do Galo, da Ilha, da Ressaca... Há quase 40 anos foi explorado artesanalmente, ilegalmente (palmas e gritos) e os seus rejeitos foram parar no Xingu (...) Tem gente que conhece mais a Europa do que o município de Senador José Porfírio e quer tomar a decisão por nós (palmas e gritos). (...) Os donos dos garimpos foram indenizados, mas os garimpeiros hoje estão lá passando fome. Aí vem um bonitão dizer que nós estamos tentando interferir na vida daquelas pessoas que são população tradicional. Que tradicional! (...) Cá entre nós, eu já dormi em barraco de madeira, de palha e hoje graças a Deus eu durmo num barraco de alvenaria. E é bem melhor do que aqueles que têm na Ressaca. No meio das cobras, dos escorpiões, das baratas. A pessoa acha que aquilo que é tradição? (...) Se há 20 anos essa pessoa estivesse trabalhando com carteira assinada a situação era bem melhor. (....) Quando se fala em empresa, pra nós é uma saída. (...) Hoje eu vou falar pra vocês, nós já aprendemos a falar por nós. A empresa tem projeto, a empresa tem condicionantes pro povo, vai gerar emprego pro nosso município, vai ter estrada boa, vai ter mais escolas, vai ter melhora pro nosso município”.
No discurso do prefeito, além da oposição calculada entre os que entendem o que é a vida lá e “os bonitos... que conhecem mais a Europa do que o município de Senador José Porfírio”, há ainda dois elementos importantes. O primeiro é a criminalização do garimpeiro, algo disseminado em todo o Brasil. O garimpeiro é sempre um criminoso e um agente do atraso, a empresa mineradora é legal e agente do progresso.
Basta um conhecimento mínimo para, sem negar os problemas do garimpo artesanal, perceber a enorme diferença de proporção e de impacto de um garimpo artesanal feito há décadas e de uma produção mineral industrial que oficialmente pretende arrancar 60 toneladas de ouro em 12 anos, mas cujos números são controversos e possivelmente sejam muito maiores.
O outro elemento é tentar deslegitimar a população de beiradeiros da região como “tradicional”, o que implica direitos constitucionais, e reduzi-la à “pobre”. Assim, com a empresa, quem sabe essas pessoas chegariam a ter um “barraco” de alvenaria, na expressão que o prefeito usa para se referir à sua própria casa. O discurso é muito semelhante ao de Belo Monte, cujos prepostos não conseguiam conter uma expressão de nojo ao mencionar as palafitas na beira do rio. Hoje, a justiça obrigou a empresa a reconstruir as casas dos conjuntos habitacionais onde jogaram os atingidos porque elas já começaram a rachar.
A conversão de povos tradicionais em pobres urbanos é um discurso muito forte no Brasil atual. No olhar de uma parte do Brasil, tudo o que um ribeirinho e um índio querem da vida é um emprego com carteira assinada, de preferência na cidade. Tudo o que supostamente desejariam na vida era ser “nós” – e não um “outro”, cujo modo de vida a maioria não entende e cujo modo de vida está no caminho dos interesses dos grileiros e dos que querem transformar a Amazônia num imenso pasto para boi ou numa plantação de soja gigante, como também fica claro no mapa. Ou numa vasta mina de extração de ouro.
O resultado é este aqui:
Outro discurso cada vez mais recorrente na região, claramente difundido por interessados, é a desmoralização do Estado: “Belo Monte deu no que deu porque tinha Estado no meio. Se tem Estado, vira corrupção. Belo Sun é empresa e ainda por cima do Canadá. Vão fazer tudo direito”. Aqui, articula-se um discurso bem atual no Brasil. Apesar de a Operação Lava Jato ter mostrado como opera o público e o privado, a marca da corrupção ficou bem mais com o Estado do que com a iniciativa privada. Essa distorção é claramente manipulada por aqueles que defendem menos Estado. Mas várias pesquisas já apontaram que a maioria dos brasileiros quer mais Estado e não menos Estado.
A outra parte interessante desse discurso é que ele é repetido pelos mesmos que criminalizam as organizações ambientais e de direitos humanos internacionais quando atuam na Amazônia, chamando-os de “gringos”, mas não veem problema algum quando é uma mineradora canadense, com dinheiro sem pátria, arrancando e levando ouro da floresta.
Há ainda um último elemento interessante no discurso do prefeito, bastante frequente na região e que foi usado e abusado como estratégia de convencimento na construção de Belo Monte. E que agora volta a se repetir com Belo Sun: a ideia de que direitos previstos na Constituição, como o direito à saúde e à educação, é uma benesse – e uma benesse que pode ser “concedida” pela empresa. Transformado em favor, o que é direito é subvertido e despolitizado.
Hoje, quem de fato faz a resistência na Volta Grande do Xingu são os povos indígenas, em especial os Juruna da aldeia Muratu, liderados pelo cacique Gilliard Juruna.
Na audiência pública na Vila da Ressaca, o prefeito Dirceu Biancardi (PSDB) declarou aos indígenas presentes: “Eu considero vocês seres humanos igual eu”.
Quem faz tal afirmação está justamente dizendo o seu contrário, já que ninguém considera necessário afirmar que um outro ser humano é ser humano, a não ser que duvide disso. Assim como trata saúde e educação como benesses, direitos previstos na Constituição pelo viés do assistencialismo, o prefeito aposta na despolitização do gesto. Isso faz dele alguém que supostamente concederia o bem fazendo o pior de todos os males: o de submeter todos os outros a si.
Exatamente o que Dirceu Biancardi (PSDB) fez no auditório da UFPA.
3) A secretária do Meio Ambiente está ameaçada de morte
Zelma Campos já foi secretário do Meio Ambiente de Altamira (8 anos) e de Brasil Novo (4 anos), duas regiões de conflito no sudoeste do Pará. Atualmente ocupa a pasta de Senador José Porfírio. Ela conta que um de seus antecessores enfartou na secretaria do Meio Ambiente do município na gestão anterior. Morreu na chegada ao hospital. Outro colega, Luiz Alberto Araújo, este de Altamira, foi atingido por nove tiros na porta da sua casa em outubro de 2016. A secretária levou mais de duas semanas para se decidir a registrar a ameaça de morte recebida numa das áreas em disputa de terras, na Volta Grande do Xingu.
– Esperei as coisas acalmarem. Ser secretário de Meio Ambiente nesta região é de altíssimo risco. Minha equipe foi checar as necessidades do programa Luz para Todos na região da Volta Grande do Xingu, numa comunidade chamada Mocotó. Uns homens se aproximaram e um deles bateu nas costas de um dos técnicos. Falou: “Vocês tão fazendo levantamento de desmatamento ilegal?”. Ele respondeu: “Não, senhor, a gente tá aqui fazendo um trabalho pra trazer energia para vocês”. Aí ele falou: “Ó, vocês voltam lá pra tua secretária e falam pra ela que o secretário de Meio Ambiente de Altamira já morreu”.
O secretário de Meio Ambiente de Altamira foi assassinado há mais de um ano, mas o inquérito ainda não foi concluído. Quem o matou segue impune, e os motivos desconhecidos, gerando especulações as mais variadas na região. Procurada pelo EL PAÍS, a assessoria de imprensa da Polícia Civil afirmou que o delegado Vinícius Dias “prefere” não dar entrevista para não comprometer as investigações. Já o registro da ameaça de morte da secretária de Senador José Porfírio foi feito em 25 de novembro na Superintendência da Polícia Civil de Altamira. Mais de dez dias depois, a informação oficial era de que ninguém sequer sabia do que se tratava. Vale lembrar que o Brasil é o país mais perigoso para ativistas do meio ambiente, segundo relatório recente da Anistia Internacional.
Ser secretário de meio ambiente na região, como Zelma Campos afirma, não é apenas de “altíssimo risco”, mas é também de alta rotatividade: “Na gestão anterior, nos quatro anos do mandato dos 12 municípios (que compõe o Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu) houve a troca de 35 secretários municipais de Meio Ambiente. Destes 35, dois foi causa mortis. Atualmente, estamos com 11 meses de gestão e já houve a troca de 7 secretários municipais de Meio Ambiente”. Segundo ela, a pressão é muito forte de todos os lados, em especial de grileiros e madeireiros. “A pessoa fica sem ar e sai, porque ela quer continuar a viver, ela quer ainda participar da sociedade. Enfim... é muito tenso”.
Zelma Campos é filiada ao PSDB. Mas não por conta do prefeito, garante, mas porque segue o marido, militar aposentado do batalhão de selva e liderança de um projeto agroextrativista na Volta Grande do Xingu. Depois de passar pelo PPS e PP, ele disputou uma vaga para vereador pelo PSDB, e ela o teria seguido na filiação ao partido. De fala pausada e baixinha, Zelma Campos se expressa sempre no mesmo tom, mesmo ao afirmar que é a primeira vez que recebe uma ameaça de morte mais direta. Antes, em 2013, quando era secretária de Brasil Novo, a caminhonete que voltava de uma ação de Cadastramento Ambiental Rural foi atingida por dez tiros na Transamazônica. Havia apenas uma pessoa no carro, o motorista, e ele só sofreu ferimentos pelos estilhaços do vidro que estourou.
A secretária de Senador José Porfírio tem fama de séria e competente na região. Mas também é vista com cautela por atores importantes, que suspeitam de que ela faça uma espécie de jogo duplo. “Uma incógnita” – é a expressão mais ouvida quando se pergunta sobre ela. Mas quando se busca algo concreto para embasar as dúvidas, ninguém aparece com uma denúncia formal. Numa região em que seguidamente secretários de Meio Ambiente são madeireiros ou cabos eleitorais sem nenhuma afinidade com a área, mas precisando de um cabide para pendurar o chapéu, ela é formada em Biologia pela UFPA e uma das poucas que se especializou na gestão pública ambiental. Ninguém duvida de que a ameaça de morte é séria. Mas até agora parece que quem deveria levar o risco a sério e apurar os fatos não leva.
Carregando um mapa para mostrar as dificuldade de administrar um município como Senador José Porfírio, ela busca apontar a complexidade que uma pessoa do centro-sul do país pode não alcançar: “O município é muito carente, é o menor IDH da nossa região. É muito rico desses minérios no subsolo, mas a parte humana é paupérrima, de verdade. É ponto pra ecoturismo, se a política pública de turismo for bem coordenada, num lado. No outro, cacau e pecuária. Só. Também tudo assim in natura, não tem nenhum princípio de indústria, nada. Tudo muito muito muito pobre... E como fazer com a prefeitura endividada, com o CNPJ cheio de procedimentos mal resolvidos? Os prefeitos anteriores chamaram tanta gente para dentro dessa prefeitura que hoje tem 535 funcionários efetivados nos seus cargos ou funções. Isso numa pequena prefeitura. É também o único município do estado do Pará que é descontínuo. Ele tem uma parte que está na cidade e outra parte tem que atravessar Vitória do Xingu e Altamira para chegar. E tudo isso é muito ruim e caro. O povo da cidade de Senador não conhece essa realidade (ela mostra o mapa). Aí, esse daqui não conversa com aquele (mostrando as duas partes descontínuas). E aqui, nessa parte, a da Volta Grande do Xingu, é a área de solo mais fértil. É onde fica o impacto de Belo Monte, onde também ficará a mineradora e onde tem 70% do território ocupado por terras indígenas. E esses indígenas também nunca foram aqui nessa outra parte do município. E nessa outra parte, nem sabem desses índios... É muito caro pra fazer gestão de política pública. Ainda mais política pública municipal eficiente. Pra reconhecer esse território, pra esse povo sentir pertencimento...”
Secretária de Meio Ambiente do município que abriga o projeto de mineração afirma que o prefeito não permite que ela fale sobre Belo Sun
As relações com os prefeitos da região, alguns deles com laços fortes com grileiros e/ou madeireiros, quando não eles próprios grileiros e/ou madeireiros também não parecem ser fáceis. Além de declaradamente ameaçada de morte, Zelma Campos vive um paradoxo: é secretária de Meio Ambiente do município em que a mineradora canadense Belo Sun quer instalar a maior mina de ouro a céu aberto da história do Brasil, tem os olhos do mundo voltados para sua região, mas afirma que o prefeito, Dirceu Biancardi (PSDB), não permite que ela fale sobre Belo Sun: “Só ele pode falar”.
Como assim?, é a pergunta seguinte. “O prefeito Dirceu (Biancardi) não admite que nenhum assessor, de nenhum escalão, vá pro front desse assunto. É ele. É ele e pronto. Então, a gente não se envolve diretamente nisso porque ele se apropria desse assunto dentro da sua gestão”.
Quando assumiu a secretaria de Senador José Porfírio, ela foi buscar ajuda para compreender os meandros de um projeto de mineração junto ao Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM). “Fechei a secretaria e passamos três dias com consultores de mineração para entender o processo todo, inclusive o licenciamento. Coloquei toda a equipe mesmo, desde o auxiliar de serviços gerais ao pessoal da análise de processos, e fiquei com eles lá na formação”. Mas, mesmo assim, ela não está autorizada a falar sobre o tema. Então, por que só o prefeito quer falar?, insisto. “Essas coisas por aqui são muito assim. Os gestores gostam dessa visibilidade”, ela diz.
Pergunto mais uma vez: “A senhora é a secretária de Meio Ambiente no município sede de um dos projetos ambientalmente mais controversos hoje no mundo, em plena Amazônia brasileira, e a senhora não pode falar sobre esse projeto porque o prefeito fala sozinho....”. Ela responde, sem alterar a voz: “Sim, sempre será assim. Eu ou quem me substituir naquele município. Sempre foi assim, o prefeito ia lá, no canteiro onde eles ficavam na Volta Grande, conversava lá, dormia lá, trocava as figurinhas financeiras lá, e a pequena equipe do município da gestão, não digo nem mais o Meio Ambiente, da gestão como um todo, não sabia de nada disso”.
Nem mesmo a secretária de Meio Ambiente sabe quantas toneladas de ouro Belo Sun planeja arrancar da Volta Grande do Xingu
E como ela nomearia a sua situação? “É tensa”, afirma. Pergunto o que achou do episódio em que o prefeito trancou as pessoas dentro do auditório da UFPA e fez do debate um palanque. “Trágico”, diz. “Nós ficamos sabendo pela mídia. E agora seremos todos investigados.”
É a favor ou contra Belo Sun? Depois de muita insistência, ela diz: “Como está, não dá, é preciso resolver os gargalos, especialmente os fundiários, e ouvir os indígenas, senão eles serão todos dizimados”. Mas afirma também não ter dúvida de que, se não for Belo Sun, será outra empresa a fazer mineração industrial numa área “tão rica”, que tem o garimpo de ouro como vocação.
Pergunto quanto ouro Belo Sun pretende arrancar da Volta Grande do Xingu, já que os números são controversos.
A secretária de Meio Ambiente de Senador José Porfírio diz: “Não sei, é uma incógnita”.
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O projeto de mineração de ouro da canadense Belo Sun não diz respeito apenas aos que vivem na Volta Grande do Xingu ou em qualquer parte do município de Senador José Porfírio. Direta e indiretamente, ele afeta a todos. Mas se os brasileiros seguirem se omitindo de exercer a cidadania mesmo quando a floresta amazônica está em risco, o prefeito de Senador José Porfírio nem vai precisar de força para seguir falando sozinho e afirmando que só o coronel pode falar.
Está fácil destruir a Amazônia. E os poucos que a defendem estão botando o peito diante da bala.