No dia 23 de maio, foi realizado no Memorial do Ministério Público Federal, em Brasília, o “Ato denúncia por direitos e contra a violência no campo”. Através de depoimentos de indígenas, quilombolas, pescadores e trabalhadores rurais, a atividade denunciou o aumento da violência contra os povos do campo recentemente.
O ato foi realizado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em parceria com movimentos e organizações sociais que, diante do acirramento dos casos de conflitos e principalmente de violência no campo, reivindicaram uma ação conjunta de denúncia e de articulação de ações que tentem desmobilizar tamanha violência.
Casos como a chacina de Colniza, no Mato Grosso, que vitimou nove trabalhadores rurais, o ataque aos indígenas Gamela, no Maranhão, em que alguns tiveram mãos decepadas, o assassinato de trabalhadores e trabalhadoras no Pará e em Rondônia, se seguiram em curto espaço de tempo e chamaram a atenção para o aumento da violência contra esses povos.
De acordo com os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), apresentados na ocasião pela Jeane Bellini, da coordenação nacional da Pastoral, em 2016 foram registrados 61 assassinatos, o dobro da média de casos registrados nos últimos 10 anos. Em 2017 já foram 26 assassinatos registrados e alguns casos ainda sob investigação quanto a sua motivação. Da mesma forma, aumentaram as tentativas de assassinato, em 2016 foram 25% a mais que no ano anterior, e as prisões, que tiveram um aumento de 185%, mostram claramente a estratégia de criminalização dos povos que lutam pelos seus direitos, terra e território no Brasil.
Jeane apresentou, também, os dados de assassinatos e julgamentos registrados pela CPT desde 1985. Nesses 31 anos, foram 1.834 assassinatos em conflitos no campo, em que somente 112 casos foram julgados, condenando 31 mandantes e 92 executores apenas. A coordenadora avalia que a impunidade continua sendo a mantenedora da violência no campo. A certeza de que não serão punidos motiva mais agentes do latifúndio a exercerem a violência como ferramenta de expropriação territorial e exploração desenfreada de recursos naturais. “O Estado não é apenas conivente ou omisso, mas também ativo na violência”, analisou ela.
“Nos últimos três anos, percebemos um aumento preocupante nos números de violência no campo, e por isso pedimos o apoio do CNDH para dar visibilidade ao que está acontecendo”, explicou Jeane. A partir da provocação e da continuidade da violência, o CNDH convidou organizações e instituições para debater o tema.
“Precisávamos denunciar e articular ações urgentes que envolvessem as entidades de direitos humanos, organizações sociais e o que restou da República para fazer algo diante de toda essa violência. Os órgãos competentes do governo precisam ver o que fazer para dar respostas imediatas diante desse processo generalizado de violência no campo”, disse Darci Frigo, presidente do CNDH.
A professora de Direito da Universidade de Brasília (UNB), Beatriz Vargas reforçou a importância desse trabalho de registro e enfatizou que a realidade é ainda mais dura do que os números da CPT mostram. “Existe um tipo de violência que é oculto, que não aparece no relatório. Manifesto aqui minha expectativa pessoal e cidadã de que essas ações de denúncia consigam de fato fortalecer a pauta de uma agenda de reversão dessa situação que é histórica no Brasil, e que vem aparecendo na cena pública de forma mais intensa ultimamente”, avaliou Beatriz.
A professora mostrou preocupação, ainda, com o aumento dos dados de prisões. “Estamos em um momento que começamos a ver na cena da chamada criminalização uma novidade, que se esboçou na ação penal instaurada pelo Ministério Público de Goiás, em que relacionam ações de luta de integrantes do MST a crimes graves. A grande novidade e preocupação nessa ação é que o MST passa a ser descrito diretamente como organização criminosa. Precisamos estar atentos para que esse precedente não se alastre na justiça brasileira”.
Os números na prática: depoimentos das vítimas da violência no campo
Fátima Barros, do Quilombo Ilha de São Vicente, no Tocantins, e da Associação Nacional dos Quilombos (ANQ), afirma que a luta dos quilombolas sempre foi constante, mas a violência se ampliou muito nos últimos anos.
“Agora, a gente sente que é como se alguém tivesse licença para nos caçar e nos matar. As violências não acontecem quando a gente se identifica como quilombola. Quando a gente diz isso, muitos até acham bonito. Mas quando digo que quero o território, que é meu por direito, aí a gente passa a incomodar, ser ameaçados, e os programas de proteção protegem cada vez menos. Regularizar nossos territórios é uma forma de amenizar as violências, mas não de cessá-las, porque a pressão sobre eles continua”, afirma a quilombola.
Para Fátima, a sociedade brasileira nunca reconheceu e nem se sente culpada pelos 400 anos de escravidão no Brasil. “Mas nós vamos seguir lutando pelos nossos territórios, porque é assim que estamos protegendo também o Brasil. Somos guardiões desses espaços, desses territórios. Estamos aqui e sempre vamos denunciar, e o mundo vai ter que ouvir sim a voz dos marginalizados. Não nos calaremos”.
Citando o caso do quilombo Rio dos Macacos, na Bahia, a quilombola Rosimeire dos Santos afirmou que em muitos casos o Estado, mais do que omisso, é o agente direto da violência. “A Marinha quer colocar cercas na água para nos destruir”. Ela se refere ao fato de que a Marinha do Brasil considera o território de Rio dos Macacos =área de defesa nacional, e pretende impedir o acesso dos quilombolas ao rio, de onde tiram seu sustento, por meio de um muro. “Se fecharem o acesso, logo vão começar a sair caixões de dentro da nossa comunidade, porque não vamos aceitar”, antevê a quilombola.
Cao Gamela colocou sua preocupação com o que ainda pode vir a acontecer com seu povo. “Temos sofrido ameaças constantes. Essa abertura do governo deu possibilidade para ação criminosa. Eles falam que nós, que buscamos nosso território, é que somos criminosos. Nos últimos dias, fomos ameaçados por drones. A polícia nos diz que esses instrumentos não são da polícia, mas nenhuma ação está sendo tomada e o povo está sendo amedrontado, porque não sabe o que pode acontecer. Disseram que é para a ANAC que tenho que reclamar. Como eu, que estou lá na comunidade, vou saber como falar com a ANAC?” questiona o Gamela.
Cao contou que os Krikati, no Maranhão, também vêm sofrendo ameaças. “A gente já não sabe mais para quem reclamar. Na reunião que teve no dia do massacre, foi lida uma lista de cinco pessoas que tem que ser mortas lá em Viana. Lá tem os fazendeiros, mas tem também o patrão, o deputado federal Aluísio Mendes [PTN-MA]. Se algum de nós morrer, nós sabemos que a culpa vai ser dele”.
Também do povo Gamela, Gracinalva Costa reforçou o ambiente de insegurança em que vivem os indígenas no Maranhão. “O massacre foi planejado com antecedência. Antes achavam que nós éramos os índios bonzinhos. A partir do momento que fomos cobrar nossos direitos, quiseram nos matar. Todos nossos direitos foram negados. Nós precisamos de nossa terra, sem o nosso território não temos nada. Continua a mesma ameaça, a partir do momento que a polícia sair de lá, índio vai morrer. Estamos com medo, mas com raiva também. Estamos cansados de correr atrás dos nossos direitos”.
Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, liderança indígena histórica da Bahia, tem 71 anos e foi incluído na lista de indiciamentos da CPI da Funai e do Incra. “É com muita raiva quevemos uma palhaçada contra as principais lideranças que trabalham com respeito com as suas comunidades e com o compromisso de recuperar os territórios que foram roubados. Nasci e me criei na aldeia, me tornei liderança para articular o povo que foi expulso da nossa terra na década de 1970”, relembra.
“De 1975 até hoje, nenhum indígena pediu minha saída da liderança. Hoje estou incluído numa CPI, que eu nem sei o que é. Talvez isso tenha acontecido porque, depois de esperar 30 anos pela Justiça, resolvemos retomar o nosso território. A violência continua contra todas as comunidades que estão lutando pelos seus territórios, que lutam porque até hoje não foi cumprida a lei. Isso é vergonhoso. São pessoas que muitas vezes não sabem seus direitos, e quando alguém conhece e começa a lutar, é crucificado”, afirmou Nailton.
Luís Batista, trabalhador rural e integrante do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), ficou preso em Rio Verde, Goiás, por mais de um ano. Solto recentemente, ele avalia que sua prisão foi política.
“Estou com 47 anos e nunca vi na minha vida lutar pela terra ser crime. Eu nunca sentei numa cadeira de escola para estudar, e não tenho vergonha de dizer isso, e nem de dizer que fui preso, porque foi uma perseguição. Teria vergonha de falar se fosse um criminoso, mas na minha vida aprendi a trabalhar na terra. Sou pai de três filhos e avô de dois netos. Eu, com 46 anos – completei 47 dentro da prisão – nunca tinha tido meu nome numa delegacia. Talvez nos fóruns, mas defendendo os direitos do povo. Não é uma prisão que vai me calar a boca. Lutar pela terra é um direito nosso e vamos continuar lutando”.
Clóvis da Silva, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) do Pará, ressaltou a pressão de projetos de infraestrutura sobre as comunidades tradicionais, falando sobre o caso de sua comunidade, pressionada pela construção de um porto de subsidiárias da multinacional Suzano. O pescador ressaltou que mesmo a energia que é vendida como “limpa”, caso de hidrelétricas e parques eólicos, é obtida por meio de projetos que desrespeitam os povos e comunidades tradicionais. “Tudo que acontece nos continentes reflete nas comunidades pesqueiras, porque tudo que se produz no país escoa pelos portos”, afirma o pescador, lembrando que a expansão do agronegócio também gera pressão sobre os territórios pesqueiros. “Nós estamos sendo ameaçados, recebendo ameaças de morte. Não dá para baixar a cabeça”.
Carlos Augusto, da CONTAG do Pará, mostrou preocupação com a criminalização dos lutadores e lutadoras sociais, bem como com a grilagem, típica no Pará, que mantem a tensão no campo, resultando muitas vezes em violência.
“Existe uma visão muito clara de criminalização dos movimentos sociais,um Estado conservador que tem um preconceito contra a luta pela terra em nível nacional. É evidente isso quando a gente olha as leis que esse congresso está aprovando”, afirma, citando os projetos do governo federal e da bancada ruralista que visam a reconcentração fundiária, a legalização da compra de terras no Brasil por estrangeiros, entre outros.
Para ele, a ação do latifúndio é fortalecida pela falta de segurança pública. “Existe uma concepção perversa e conservadora baseada na pecuarização, numa matriz energética que destrói o ambiente, acaba com as terras indígenas e quilombolas, uma matriz minerária que vai destruindo milhares e milhares de trabalhadores e trabalhadoras. O Pará sempre foi um estado de lista de marcados para morrer, com preço de homens e mulheres marcados por se contrapor ao agronegócio, ao modelo de desenvolvimento e aos governos que foram eleitos em nome do latifúndio”.
Giselda Pereira, seringueira de Rondônia, denunciou que “os que fizeram a chacina em Colniza são os mesmos que querem nos matar, invadir nossas reservas, nos destruir. Só em Rondônia, já foram 10 mortes por conflito agrário só neste ano. As pessoas que contrataram gente para matar aqueles nove são as mesmas que nos ameaçam. Pedimos que olhem para as unidades de conservação de Rondônia e parem os conflitos. Sou seringueira, não lutamos por terra, lutamos por florestas. Assim como nossos irmãos indígenas e quilombolas, é graças aos povos que sobrevivem nelas que elas ainda existem. Mas, infelizmente, se continuar assim elas vão deixar de existir e os povos que delas vivem serão dizimados”.
Alberto Terena, do Conselho Terena e da APIB, também denunciou a gravidade da CPI da Funai e o indiciamento de indígenas como resultado dela. “Estamos vendo legalizar esta questão de tirar nosso direito, de matar o índio e isso está legalizado. Foi na semana passada aprovado o relatório da CPI da Funai, o Nailton e outros 14 indígenas estão sendo incriminados por lutar por seus direitos. Por isso eu também já fui preso. Dentro do Congresso hoje, tem a bancada ruralista, e ela é maioria. Onde que o nosso direito vai ser respeitado por essa bancada?”, questiona.
“Os que nos defendiam não tinham direito de falar, e a sala era cercada para que nenhum representante indígena pudesse entrar. Quando você olha o relatório, são os índios que eles estão tentando incriminar, chamando o cacique Babau de bandido. Isso é gravíssimo. No Brasil, buscar o que diz a Constituição do nosso país se tornou crime, porque o governo não quer reconhecer e os grandes proprietários de terra que estão no Congresso dizendo ‘índio não precisa de terra’. Por isso estamos buscando fazer a denúncia internacional. Temos que nos juntar para que nossa caminhada se fortaleça a cada dia e não tenhamos que estar enterrando nossos parentes”, completou o Terena.
Denúncia e compromisso
Representantes de órgãos do governo, como Ministério Público Federal, Comissões de Direitos Humanos e Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, OAB Nacional, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, Comissão de Direitos Humanos do Senado, entre outros, ouviram os depoimentos e as diversas denúncias de violência.
Após a leitura da Carta Compromisso do Ato, as autoridades assumiram o compromisso de levar o documento para suas instâncias de ação e cobrar desses órgãos que também assumam a responsabilidade sobre essas denúncias, exigindo ações imediatas do Estado para frear a violência no campo.
Para Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão (MPF), a construção histórica do nosso país sempre deixou os povos originários de lado e os atingiu com violência para manter seu processo colonialista de consolidação social.
“Temos que lembrar a construção da nossa história, da falta de alteridade em relação aos povos originários, da escravidão e tantas outras mazelas, bem como a divisão das sesmarias. Parece que agora estamos voltando ao início da nossa história. Tivemos um ministro do Trabalho que se recusou a publicar a lista suja do trabalho escravo”.
Para a procuradora, há uma ofensiva para que voltemos a ser uma sociedade de poucos homens, brancos e ociosos. “Precisamos combater a ideia de que uma pessoa seria criminosa por lutar”.
Duprat também ressaltou a preocupação com a impunidade dos agressores e a atuação cada vez mais intensa de milícias armadas. “A CPT em Mato Grosso denunciou que de todos os assassinatos que tiveram no estado, não houve nenhuma punição. No Mato Grosso do Sul conseguimos somente através de uma força tarefa ter alguma punição em relação às constantes violências contra os Guarani e Kaiowá e os Terena. Queremos, também, assumir um compromisso de enfrentamento às milícias armadas. Sabemos que em Rondônia e no Pará o número de casos tem aumentado muito”.
A absurda atuação da bancada ruralista na CPI da Funai e do Incra também causa preocupação à procuradora que enfatizou que precisamos cobrar esses agentes do agronegócio dos seus crimes contra os povos do campo. O próprio deputado Nilson Leitão (PSDB – MT), relator da CPI, responde a inquérito que segue em segredo de justiça no STF por ter tido uma ligação telefônica interceptada quando da demarcação da TI Marãiwatsédé, conclamando as pessoas para invadirem a área indígena e impedirem a demarcação. “A legislação está sendo feita para a violência aumentar, e os latifundiários estão se sentindo muito à vontade”, finalizou.
O subprocurador da República e coordenador da Sexta Câmara do MPF, especializada em direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, anunciou que o órgão está organizando um mecanismo de alerta rápido para prevenção de massacres e violações de direitos.
“Mesmo nas situações de ameaça, há algumas que podem ser consideradas ameaças mais agravadas, e essas que podem se converter em morte. O que é importante é que nós tenhamos essa rede de parceiros articulada para que possamos imediatamente responder, para impedir que a fase seguinte aconteça”, explicou.
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